A inadimplência crescente no agronegócio tem sido tratada, quase sempre, como um problema de gestão individual, quando na verdade revela uma falha sistêmica: a escassez de crédito, sobretudo nos momentos em que ele é mais necessário.
Enquanto isso, representantes de instituições financeiras seguem culpando os pedidos de recuperação judicial pelo aumento da insegurança jurídica no setor, sem mencionar sua própria omissão na etapa anterior, a de evitar que se chegue a esse ponto.
O enrijecimento das tratativas extrajudiciais, somado à retração deliberada dos bancos tradicionais, tem empurrado produtores rurais para alternativas cada vez mais caras e complexas. No vácuo deixado pelas instituições financeiras, ganham espaço os fundos de investimento, que oferecem capital com um custo muito superior e exigências contratuais bem mais agressivas. É um jogo assimétrico, no qual o produtor acessa o crédito já em posição de desvantagem, pressionado pelo tempo, por garantias escassas e por prazos exíguos. E, nesse cenário, a reestruturação não apenas se torna mais cara. Ela se torna, muitas vezes, inviável.
É importante reconhecer o que isso significa para o próprio sistema financeiro. O risco não está em um suposto “abuso” do instituto da recuperação judicial. Está, antes, na substituição do crédito regulado por operações privadas altamente onerosas, com custo de capital que ultrapassa 20% ao ano e estrutura jurídica voltada à execução célere, não à recuperação. Essa mudança de perfil tende a elevar o número de quebras definitivas, não apenas o de pedidos de RJ. Se o setor bancário considera o cenário atual preocupante, é prudente projetar o que virá caso esse movimento se intensifique.
Não se trata, portanto, de defender o uso irrestrito da RJ, nem de blindar a advocacia das críticas que cabem a qualquer atividade técnica. O que está em jogo é a responsabilidade sistêmica pela deterioração dos meios extrajudiciais. A ausência de flexibilidade bancária, os contratos que desconsideram o ciclo do agro, e a recusa em construir soluções viáveis de alongamento e repactuação conduzem, invariavelmente, ao Judiciário, e, quando possível, ao mercado paralelo de crédito.
A operação conduzida pelo Banco do Brasil em 2020, ao ceder uma carteira de R$ 2,9 bilhões ao BTG Pactual, ilustra parte desse movimento. À época, a CGU apontou falhas graves: ausência de planejamento estruturado, superficialidade na gestão de riscos e fragilidade na precificação. Mesmo com as ressalvas técnicas, a prática se expandiu. E é esse modelo, a transferência de créditos em perda para terceiros, que alimenta boa parte dos fundos que hoje operam no agro com taxas elevadas. A crítica que se faz ao aumento da judicialização precisa, portanto, ser acompanhada de um olhar mais atento ao que está sendo colocado no lugar do crédito tradicional.
O setor rural não precisa de menos crédito. Precisa de crédito melhor estruturado, com inteligência regulatória, critérios claros de renegociação e disposição para compor antes que a crise se agrave. A alternativa já está posta, e ela é mais cara, mais dura e menos interessada na continuidade da atividade produtiva.
Insistir em ignorar essa realidade não tornará o problema menor. Apenas mais difícil de resolver.